27 setembro 2017

Cronista do cotidiano, Cuíca de Santo Amaro

Há 110 anos nascia, “ele, o tal”, Cuíca de Santo Amaro que se tornou célebre por vender seus panfletos de cordel, preenchidos não com novelas, mas com os rumores da cidade – segredos de alcova e trapaças de ricos marreteiros nunca lhe escapam. Seus métodos de atuação, aos poucos descortinados pela história, incluíam a “canalhice modesta”, como classificou o jornalista Paolo Marconi num estudo sobre Cuíca. Ao sair às ruas com um novo escândalo na manga, o cordelista exultava em dar nomes: quem não quisesse ser exposto em praça, que o chamasse para uma conversa. Vai pagar? “Só não escrevo contra Deus. No mais, o que vier, eu traço. Adoro escrever contra padres e o Diabo”, dizia. A mesma ética da imprensa: de Chateaubriand, de Hearst, Murdock aos atuais sites de muitas empresas baianas.


Entre as décadas de 40 e 60 um cronista do cotidiano se destacava em Salvador. Mestre de trovador e repórter, Cuíca de Santo Amaro se celebrizou como um dos personagens mais importantes da história recente da cultura baiana. Seus versos virulentos assustavam poderosos e gente comum, e não havia segredo guardado a sete chaves que escapasse do seu faro para escândalo, que tornava público na cidade através de cordéis.


Amado por uns, odiado por outros, ele vestia um fraque bem passado, flor na lapela e chapéu-coco. Dessa forma ele desfilava pelas principais ruas de Salvador declamando seus versos de poeta trovador. Apesar de não ter estudado e não estar entre os melhores versificadores da literatura de cordel, Cuíca era a síntese do trovador-repórter popular. Ele forneceu um relato picante e interessante do seu tempo, um retrato folclórico-popular da vida baiana, através de centenas de folhetos, impressos semanalmente durante quase 25 anos. Muitos dos seus cordéis fazem denúncia contra abusos praticados contra o povo. Criticava não só políticos que julgava sem caráter, mas donos de estabelecimentos que cobravam, preços altos e repartições que forneciam serviços públicos de má qualidade.


Participou do filme “A Grande Feira”, dirigido por Roberto Pires, representando ele mesmo, e inspirou o personagem Dedé Cospe Rima de “O Pagador de Promessas”, dirigido por Anselmo Duarte e baseado na obra homônima de Dias Gomes. Inspirou personagens do escritor Jorge Amado (A morte de Quincas Berro D´Água, Tereza Batista Cansada de Guerra e Pastores da Noite). Tudo reflexo do reconhecimento que conquistou, na vida do povo de sua terra.


Com base em um escândalo que explodiu em Salvador em 1956 Cuíca anunciou em cordel: “A Bahia que era,/orgulho dos brasileiros,/antigamente gabava,/por todos os estrangeiros,/transformou-se por encanto,/em antro de marreteiros./Marreteiros granfinotes,/os quais vivem engravatados,/na arte da roubalheira,/já são eles inveterados,/mas não pela polícia,/dificilmente fechados./Porque muitas vezes,/são homens de posição,/que dão bronca no comércio,/depois ganham na questão,/ainda chamam a polícia,/para a sua proteção”.

Quando os jornais esqueciam um escândalo Cuíca entrava em ação. E uma das suas formas de atuação era que ele recebia dinheiro para elogiar, recebiam daqueles que queriam ser poupados (não sofrer na língua do poeta), dos que queriam desmoralizar alguém ou dos leitores que compravam suas revistinhas para saber da vida alheia e dos últimos acontecimentos. Pescadores que chegavam nos saveiros à Rampa do Mercado, baianas, marinheiros, todos ficavam sabendo do que acontecia na cidade, no país e no mundo através dos versos de Cuíca.

Ele contava com detalhes o último crime sensacional, o aumento do preço da carne seca e da farinha, o incidente dos bêbados e a última façanha dos cangaceiros. Ele era bem informado dos acontecimentos, sobretudo aqueles abafados pela polícia, jornais e rádios. Cuíca contava com a ajuda de muitas pessoas que o procurava para fazer denúncias. Cuíca se considerava um defensor e porta-voz dos mais pobres e investia com toda rudeza contra os responsáveis pelos péssimos serviços prestados ao povo de Salvador, denunciado negociatas, cambalhachos, manobras altistas e câmbio negro de produtos alimentícios.


Cuíca nasceu em Salvador em 19 de março de 1907. Ele ia muito a cidade de Santo Amaro da Purificação namorar e tocar violão. Foi lá, inclusive, que conheceu a mulher, Maria do Carmo Sampaio. A intimidade com os versos começou com a profissão de propagandista. Ele anunciava em versos as mais diferentes atividades comerciais da cidade. Vestido de cartola e fraque, gritava a quem passava pela Baixa dos Sapateiros uma grande liquidação ou um novo filme na cidade. Dessa forma, ele aprendeu com maestria a chamar a atenção do público.


O trovador morreu no dia 23 de janeiro de 1964, aos 56 anos. Por mais de 20 anos foi o cronista de Salvador, autor de mais de 400 folhetos de cordel, até hoje ele é um tipo maldito, mas atual. Sua função social foi importante, mas ele teve suas próprias regras éticas. Quem melhor difundiu sua função social foi Jorge Amado: “Não pense o visitante que ele seja apenas um tipo de rua, figura popular e risível. É bem mais que isso. É a voz do povo trabalhando que, não encontrando ressonância nos poetas modernos, e tendo sede de poesia, cria seu bardo pobre e semi-analfabeto. Os poetas estão nos bares inventando sonetos de rimas milionárias ou quebrando a cabeça em ritmos novos para poemas exotéricos. Só Cuíca de Santo Amaro canta para o povo pobre. Quando o forasteiro passar por ele talvez a figura e a voz do trovador mereçam apenas um sorriso dos seus lábios civilizados. Mas, que importa? O povo não sorri do poeta. Ri e sofre com ele, combate e tem esperança!”.

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