30 setembro 2010

Cultura indígena dos tupinambás brasileiros ou “vamos cumer”

Foi com grata surpresa que recebi pelo correio um livro enviado pela minha querida amiga Cathy, lá de Barreiras. A leitura desse livro me fez voltar à infância, uma vez que sempre fui fascinado pelos povos da floreta, seus mitos e idiomas. Mas o período escolar (naquela época) afastou nossos sonhos. A escola era um local sagrado onde o mestre sempre tinha razão e cabia ao aluno “decorar” tudo o que ele transmitia e nada opinava...


Meu destino é ser onça (Editora Record) é o título do livro que Cathy me enviou cujo subtítulo é Mito tupinambá restaurado por Alberto Musa. Somos descendentes de uma população que tem histórias milenares para contar, mas isso não é ensinado nas escolas, muito pelo contrário. O que é ensinado pra nós é sobre a valorização da cultura europeia. A nossa, diziam os mestres, é inferior. As crianças francesas quando lê o gibi de Asterix tem uma ligação ideológica com o passado francês antes dos romanos, da inclusão numa história europeia. Aqui nós aprendemos a valorizar o Batman, o Pato Donald e outros, não há espaço para nossos personagens. Claro que tem as exceções: Ziraldo (Pererê), Cedraz (Xaxado), Lage (Tudo Bem)...


“Há 15 mil anos somos brasileiros e não sabemos nada do Brasil”, revela Mussa (p.22) referindo-se à sobrevivência da matriz indígena na consolidação do processo miscigenatorio brasileiro, ou seja, a conscientização de que os cinco séculos de idade do Brasil, cronologia baseada em uma tradição imperialista que não mais se sustenta, são a imagem de uma origem que deve ser revista.


Mussa informa que André Thevet foi um frade que acompanhou Villegagnon em sua tentativa de estabelecer uma colônia francesa no Brasil. O frade escreveu três obras sobre o Brasil, onde conviveu intensamente com os índios, aprendendo a língua tupi e observando os ritos antropofágicos.

“Meu destino é ser onça” é composto por quatro partes: a primeira delas é introdutória, um sumário que precisa questões sobre ortografia e nomenclatura tupis. A segunda parte apresenta o mito tupinambá que explica a criação do mundo e dos seres que nele habitam, bem como a origem e o destino das várias divindades indígenas. Escolhendo elementos de vários relatos de viajantes do Brasil-Colônia que reproduziam mitos indígenas, Mussa “reconstruiu” o que seria uma versão original da mitologia tupinambá, o que incluía uma cosmogonia que aborda a criação do mundo, a origem dos astros e das estrelas e até de elementos da vida e da estrutura social dos índios, como o canibalismo.


Em seguida, o autor enumera os textos que serviram de fonte para o trabalho, traduzidos quando necessário, como um depoimento do frade francês Thevet sobre o que viu em uma viagem ao Brasil e no contato com os índios. As fontes utilizadas por Mussa em sua restauração (nomes como Hans Staden, Padre Anchieta, Gândavo e outros) são apresentadas além de uma detalhada metodologia de confrontação dos dados (que Mussa chama de “cálculo textual”), onde se explica os critérios de seleção das informações que formaram a versão restaurada. Trata-se de um estudo linguístico-antropológico, destinado mais a especialistas, sobre o cálculo usado por Mussa para escolher alguns elementos dessas fontes e dispensar outros na elaboração de uma narrativa única da origem do mundo segundo os tupis.


Alberto Mussa escreveu contos de Elegbara, os romances O Trono das Rainha Jinga, O Enigma de Qaf, e O Movimento Pendular, além de traduzir diretamente do árabe e coletânea de poesia pré-islâmica denominada Os Poemas Suspensos. Com Meu Destino é ser Onça o tema central é a busca da terra-sem-mal, só atingível com a prática do canibalismo – costume que tanto repugnou aos europeus. O rito antropofágico era, para os índios, a principal aquisição da cultura, capaz de transformar em Bem o Mal inevitável inerente à natureza.

O título do livro se explica nesse caminho: o destino do tupinambá é ser canibal, carnívoro e caçador como a onça, e esse horizonte só faz sentido quando observado em suas ressonâncias míticas e religiosas. É preciso embarcar em uma perspectiva que dê conta da multiplicidade dos significantes míticos envolvidos na epopeia tupinambá. O mito dos tupinambás é, segundo Mussa, uma exaltação aos valores canibais. E isso acontece porque apenas com a prática canibal o índio poderia alcançar, depois de sua morte, a terra-sem-mal: terra perfeita, como era antes das grandes catástrofes, causadas pelas maldades dos próprios homens.. A antropofagia conferia valor ao guerreiro nas provas da morte, e a prática deveria ser urgente, já que os índios acreditavam que o mundo poderia ser aniquilado a qualquer momento. “No jogo canibal, cada grupo depende totalmente de seus inimigos, para atingir, depois da morte, a vida eterna de prazer e alegria. O mal assim, é indispensável para a obtenção do bem; o mal, portanto, é o próprio bem” (p. 73).


A obra escrita num estilo simples reproduz todas as fontes empregadas na restauração tornando uma leitura mais interessante. Vale conferir.

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Até o dia 03 de outubro na Caixa Cultural Salvador (Rua Carlos Gomes, 57, Centro. Tel. 3421-4200) está aberta a mostra de charges, caricaturas, cartuns e tiras de Hélio Lage. A mostra é aberta de terça a domingo, das 09 às 18h, curadoria de Nildão, produção cultural de Alice Lacerda, com o apoio da TV E e patrocínio da Caixa. E para os aficcionados nos trabalhos de Lage, vale conferir o site: www.heliolage.com.br.


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Quem desejar adquirir o livro Bahia um Estado D´Alma, sobre a cultura do nosso estado, a obra encontra-se à venda nas livrarias LDM (Piedade), Galeria do Livro (Boulevard 161 no Itaigara e no Espaço Cultural Itau Cinema Glauber Rocha na Praça Castro Alves), na Pérola Negra (ao lado da Escola de Teatro da UFBA, Canela) e na Midialouca (Rua das Laranjeiras,28, Pelourinho. Tel: 3321-1596). E quem desejar ler o livro Feras do Humor Baiano, a obra encontra-se à venda no RV Cultura e Arte (Rua Barro Vermelho, 32, Rio Vermelho. Tel: 3347-4929.

Um comentário:

Cassiano disse...

Ótimo texto!
Concordo plenamente que temos uma história anterior à 1500 é precisamos resgatá-la e vivê-la urgentemente.
Escrevi um texto chamado "A Velhice do Novo Mundo" onde falo sobre isso, que somos tão velhos quanto o "velho mundo"...não somos "novo mundo" e tampouco temos 511 anos.

Samuel J. Cassiano,
Acadêmico de História-UNILA universidade da integração latino americana