24 outubro 2008

Música & Poesia

Treze Fletes (Mauro Moraes)

Neste viver transumante, treze cavalos montei
Treze pelagens distintas, os treze fletes de lei
Era rosilho o primeiro, pêlo de brasas dormidas
Que se recolhem de cinzas velando noites compridas

Foi baio ruano o segundo, pêlo de libras e sóis
Crinas brancas como geadas, matizadas de arrebóis
O terceiro um colorado, pêlo da cor das sangrias
Tranqueava sonando as ventas nas madrugadas mais frias

Tive depois um tostado como pitangas maduras
Bom de campo e de carreira, vaqueano em noites escuras
O quinto foi um gateado, tinha a cor dos pajonais
Pêlo e negaça de puma que se esconde entre cardais

Depois encilhei um mouro, bom de boca e trote bueno
Com pêlo de um poncho pampa, respingado de sereno
Nesse cambiar de montadas, um tempo pra cada flete
Pêlo de açúcar queimado, foi zaino o número sete

Tordilho como as melenas encanecidas de um taita
O oitavo dos meus pingos gostava de um som de gaita
Depois tive um alazão, lindo como flor singela
Nos ranchos que eu não chegava vinham me olhar na cancela

Outro lobuno me lembra, fumaça de bamburral
Pêlo de nuvens escuras pressagiando temporal
Era o décimo primeiro picaço, estrela na cara
Na noite escura do pêlo um lunar na testa clara

Noutra feita um douradilho que em seu pêlo refletia
Lampejos de água correndo ao sol quando nasce o dia
Tem pêlo de seda negra, o pingo que encilho agora
Noite sem lua ou estrelas, sem um sinal pêlo afora

É ele o número treze dos que tive e encilhei
Treze pêlos sem parelhas, os trezes fletes de lei!


Procura da Poesia (Carlos Drummond de Andrade)


Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.
Tua gota de bile, tua careta de gozo ou dor no escuro
são indiferentes.
Não me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem de equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.
Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.
O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.
Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.
Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.
Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível que lhe deres:
Trouxeste a chave?
Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.


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