06 novembro 2007

Nos tempos líquidos o futuro pode morrer de sede (2)

A sabedoria antiga advertia: “Se você quer a paz, cuida da justiça”. Atualmente, a ausência de justiça está bloqueando o caminho para a paz, tal como o fazia há dois milênios. Para o sociólogo Zygmunt Bauman o que mudou é que agora a “justiça” é, diferentemente dos tempos antigos, uma questão planetária, medida e avaliada por comparações planetárias. E apresenta as duas razões: O mundo está atravessado por “auto-estradas da informação”, nada que acontece em alguma parte dele pode de fato permanecer ao “lado de fora” intelectual. A miséria humana de lugares distantes e estilos de vida longínquos, assim como a corrupção de outros lugares são apresentadas por imagens eletrônicas e trazidas para casa e modo tão nítido e pungente como o sofrimento ou a prodigalidade ostensiva dos seres humanos próximo de casa. As injustiças a partir das quais se formam os modelos de justiça não são mais limitadas à vizinhança imediata e coligadas a partir de “privação relativa” ou dos “diferenciais de rendimento” por comparação com vizinhos de porta.

Assim, num planeta aberto à livre circulação de capital e mercadorias, o que acontece em determinado lugar tem um peso sobre a forma como as pessoas de todos os lugares vivem, esperam ou supõem viver. Nada pode verdadeiramente ser, ou permanecer por muito tempo, indiferente a qualquer outra coisa: intocado e intocável. A quebra de fronteiras, chamada de globalização, tornou as sociedades abertas, seja material ou intelectual. Resultado: toda injúria, privação relativa ou indolência planejada em qualquer lugar é coroada pelo insulto da injustiça: o sentimento de que o mal foi feito, um mal que exige ser reparado, mas que, em primeiro lugar, obriga as vítimas a vingarem seus infortúnios...

Trata-se de uma sociedade impotente, em decidir o próprio curso com algum grau de certeza e em proteger o itinerário escolhido, uma vez selecionado. Essa globalização seletiva do comércio e do capital, da vigilância e da informação, da violência e das armas, do crime e do terrorismo. Todos unânimes em seu desdém pelo princípio da soberania territorial e em sua falta de respeito a qualquer fronteira entre Estados. Uma sociedade “aberta” é uma sociedade exposta aos golpes do “destino”. A perversa abertura das sociedades imposta pela globalização negativa é por si só a causa principal da injustiça e, desse modo, indiretamente, do conflito e da violência.

“Mercados sem fronteiras” é uma receita para a injustiça e para a nova ordem mundial. A política passa a ser um continuação da guerra por outros meios, basta observar as ações do governo dos Estados Unidos e seus “satélites mal disfarçados” de instituições internacionais como o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e a Organização Mundial do Comércio que geraram o nacionalismo, o fanatismo religioso, o fascismo e o terrorismo nessa globalização liberal. Daí outra advertência da sabedoria antiga: quando as armas falam, as leis silenciam. E não foi o sentimento de segurança a única baixa colateral da guerra. As liberdades individuais e a democracia logo compartilharam a mesma sorte. O medo agora se estabeleceu, saturando nossas rotinas cotidianas.

Os que podem se dar ao luxo de se fortalecerem contra os perigos, protegem-se por trás de muros, equipando os acessos a moradias com câmeras de TV, contratando segurança armados, dirigindo carros blindados. E o círculo vicioso foi deslocado/transferido da área da segurança (a autoconfiança e a auto-afirmação, ou a ausência delas) para a proteção (resguardar as ameaças à própria pessoa e suas extensões). Assim a primeira área despida de sua proteção institucionalizada pelo Estado tem sido exposta aos caprichos do mercado. Grande parte do capital comercial é acumulado a partir da insegurança e do medo. Os publicitários têm explorado os medos generalizados de terrorismo catastróficos para aumentarem ainda mais as vendas dos utilitários esportivos, altamente lucrativos (os veículos militares esportivos já alcançaram 45% de todas as vendas de automóveis nos EUA). A estratégia de lucrar com o medo está igualmente bem arraigada.

A sociedade não é mais protegida pelo Estado, ou pelo menos é pouco provável que confie na proteção oferecida por este. O que resta de força e de política a cargo do Estado e seus órgãos se reduz gradualmente a um volume suficiente para guarnecer pouco mais que uma grande delegacia de polícia. O Estado reduzido dificilmente poderia conseguir ser mis eu um Estado da proteção pessoal. Num planeta negativamente globalizado, todos os principais problemas são globais e, sendo assim, não admitem soluções locais. A insegurança do presente e a incerteza do futuro produzem e alimentam o medo. Essa insegurança e incerteza nascem de um sentimento de impotência.

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