30 outubro 2007

Pessoa, múltiplo, só

No dia 30 de novembro de 1935 morria o poeta português Fernando Pessoa. Sua obra continua a exercer forte influência em inúmeros poetas. Criador de uma obra poética de dimensões universais como um caso único, Pessoa é uma figura fundamental para a poesia contemporânea. Transportuguês, universal, pessoal, múltiplo, só.

“Triste de quem vive em casa,

Contente com o seu lar,

Sem que um sonho, no erguer de asa

Faça até mais rubra a brasa

Da lareira a abandonar!

Triste de quem é feliz!

Vive porque a vida dura.

Nada na alma lhe diz

Mais que a lição da raiz

Ter por vida a sepultura.

Eras sobre eras se somem

No tempo que em eras vem.

Ser descontente é ser homem.

Que as forças cegas se domem

Pela visão que a alma tem!

E assim, passados os quatro

Tempos do ser que sonhou,

A terra será teatro

Do dia claro, que no atro

Da erma noite começou.

Grécia, Roma, Cristandade,

Europa — os quatro se vão

Para onde vai toda idade.

Quem vem viver a verdade

Que morreu D. Sebastião? (O Quinto Império)”

No sofrido recato de sua vida pessoal, deu-nos uma plena medida da grandeza humana, como poucos o terão feito. “Tudo vale a pena, se a alma não é pequena”. Franzino e atormentado homem, Pessoa foi um gigante da palavra poética, iluminado.

“Ó mar salgado, quanto do teu sal

São lágrimas de Portugal!

Por te cruzarmos, quantas mães choraram,

Quantos filhos em vão rezaram!

Quantas noivas ficaram por casar

Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena

Se a alma não é pequena.

Quem quer passar além do Bojador

Tem que passar além da dor.

Deus ao mar o perigo e o abismo deu,

Mas nele é que espelhou o céu. (Mar Português)

Com uma temática multiforme, mudando a cada instante a paisagem, o tempo e o espaço, a poesia de Fernando Pessoa é inquietante. Mergulhada nas subterrâneas entranhas, profundas e obscuras numa apreensão do mistério que a tudo prolonga, ele viveu fechado numa solidão misteriosa. Cheio de fagulhas de poesia ele se multiplicou para chegar ao seu “eu profundo”, reconstruído pelo sonho e pela poesia.

“O poeta é um fingidor.

Finge tão completamente

Que chega a fingir que é dor

A dor que deveras sente.

E os que lêem o que escreve,

Na dor lida sentem bem,

Não as duas que ele teve,

Mas só a que eles não têm.

E assim nas calhas de roda

Gira, a entreter a razão,

Esse comboio de corda

Que se chama coração. (Autopsicografia)”

Melancolia, introspecção, dor. Para transcender seu mundo modesto e solitário ele construiu heterônimos e, para cada um construiu biografia e estilo próprios. Alberto Caeiro fazia poemas bucólicos e pastoris. Álvaro de Campos era o responsável pelas mais inspiradoras e audaciosas poesias do seu criador. Ricardo Reis é o poeta das odes e da linguagem clássica. Bernardo Soares, autor de um diário lírico e metafísico intitulado “O Livro do Desassossego”. Antonio Mora, autor de “O Regresso dos Deuses”.

“Sou um guardador de rebanhos.

O rebanho é os meus pensamentos

E os meus pensamentos são todos sensações.

Penso com os olhos e com os ouvidos

E com as mãos e os pés

E com o nariz e a boca.

Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la

E comer um fruto é saber-lhe o sentido.

Por isso quando num dia de calor

Me sinto triste de gozá-lo tanto,

E me deito ao comprido na erva,

E fecho os olhos quentes,

Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,

Sei a verdade e sou feliz. (Trecho de O Guardador de Rebanhos)”

"Os sentimentos que mais doem, as emoções que mais pungem, são os que são absurdos - a ânsia de coisas impossíveis, precisamente porque são impossíveis, a saudade do que nunca houve, o desejo do que poderia ter sido, a mágoa de não ser outro, a insatisfação da existência do mundo. Todos estes meios tons da inconsciência da alma criam em nós uma paisagem dolorida, um eterno sol-pôr do que somos...O sentirmo-nos é então um campo deserto a escurecer, triste de juncos ao pé de um rio sem barcos, negrejando claramente entre margens afastadas." (Livro do Desassossego: Composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa / Fernando Pessoa)“Tenho tanto sentimento

Que é freqüente persuadir-me

De que sou sentimental,

Mas reconheço, ao medir-me,

Que tudo isso é pensamento,

Que não senti afinal.

Temos, todos que vivemos,

Uma vida que é vivida

E outra vida que é pensada,

E a única vida que temos

É essa que é dividida

Entre a verdadeira e a errada.

Qual porém é a verdadeira

E qual errada, ninguém

Nos saberá explicar;

E vivemos de maneira

Que a vida que a gente tem

É a que tem que pensar. (Cancioneiro)”

No mundo inteiro, Pessoa é relançado, lido e considerado um dos gigantes da poesia do século XX. “Não sou nada/nunca serei nada/não posso querer ser nada/à parte isso, tenho em mim todos os sonhos/do mundo”.

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