27 fevereiro 2007

O mar e o rio de Bethânia

O emocional e o intelectual, a água salgada e a doce, o litoral e o interior. São experiências quando se ouve os dois CDs de Maria Bethânia: Mar de Sophia, estruturado em torno do mar e suas metáforas e da poeta portuguesa Sophia de Mello Breyer. O outro, Pirata, traz o rio como inspiração, e Pessoa, Rosa, João Cabral e Vieira como referências. Vale apenas ouvir os dois trabalhos, juntos seguidamente. Com água a cantora cria um ambiente de purificação.

Entre as inéditas está Memórias do Mar, de Vevé Calasans e Jorge Portugal:”A água do mar na beira do cais/vai e volta volta e meia vem e vai//A água do mar na beira do cais/vai e volta volta e meia vem e vai//Quem um dia foi marinheiro audaz/relembra histórias/que feito ondas não voltam mais//Velhos marinheiros do mar da Bahia/o mundo é o mar/maré de lembranças/lembranças de tantas voltas que o mundo dá//Tempestades e ventos/tufões violentos/e arrebatação/hoje é calmaria/que dorme dentro do coração//Velhos marinheiros do mar da Bahia/o mundo é aqui/maré mansa e morna/de Plataforma ou de Peri-Peri//Velhos marinheiros do mar da Bahia/o mundo e o mar/maré de lembranças/lembranças de tantas voltas que o mundo dá”.

Tem uma gravação tocante do samba-enredo “Das maravilhas do mar fez-se o esplendor de uma noite”, de David Corrêa e Jorge Macedo. Diz a letra: “Deixa-me encantar/com tudo teu e revelar/o que vai acontecer/nesta noite de esplendor/o mar subiu na linha do horizonte/desaguando como fonte/ao vento a ilusão teceu/o mar/por onde andei mareou/rolou na dança das ondas/no verso do cantador//Dança quem ta na roda/roda de brincar/prosa na boca do vento/e vem marear//Eis o cortejo irreal/com as maravilhas do mar/fazendo o meu carnaval/é a brisa a brincar/a luz raiou pra clarear a poesia/num sentimento que desperta na folia/amor amor/amor sorria ô ô ô/um novo dia despertou//E lá vou eu/pela imensidão do mar/esse onda que borda a avenida de espuma/me arrasta a sambar”.

Por meio das poesias de Sophia de Mello Breyner, lidas ao longo do álbum Mar de Sophia, Bethânia revela: “O mar azul e branco e as luzidias pedras (...)/Onde o que está lavado se relava/Para o rito do espanto e do começo/Onde sou a mim mesma devolvida/Em sal, espuma e concha regressada/A praia inicial da minha vida”.

E na faixa Memória das Águas, de Roberto Mendes e Jorge Portugal, Bethânia resume o projeto quando canta: “Amores são águas doces/Paixões são águas salgadas/Queria que a vida fosse/Essas águas misturadas// Eu que já fui afluente/Das águas da fantasia/Hoje molho mansamente/As margens da poesia// Cachoeira da Vitória/ Timbó das pedras de seixo/ Vocês são minha memória/Correm em mim desde o começo//Quando o Subaé subia/Beijando o Sergimirim/Um amor de águas limpas/Nascia dentro de mim//E foi assim pela vida/Navegando em tantas águas/Que mesmo as minhas feridas/Viraram ondas ou vagas//Hoje eu lembro dos meus rios/Em mim mesma mergulhada/Águas que movem moinhos/Nunca são águas passadas//Eu sou memória das águas/Eu sou memória das águas”.

Na letra de Ana Carolina e Jorge Vercilo ela confessa: “Garimpeira da beleza/te achei na beira de você me achar/me agarra na cintura, me segura e jura que não vai me soltar/e vem me bebendo toda, me deixando tonta de tanto prazer/navegando nos meus seios, mar partindo ao meio/não vou esquecer//Eu que não sei quase nada do mar/descobri que não sei nada de mim....” (Eu que não sei quase nada do mar).

A poesia de Drummond, musicada por Sueli Costa: “O mundo é grande e cabe nessa janela sob o mar”. E de novo o Mar sonoro de Sophia: “Mar sonoro, mar sem fundo, mar sem fim./A tua pureza aumenta quando estamos sós/e tão fundo intimamente a tua vez/segue o mais secreto bailar do meu sonho/que momentos há em que eu sozinho/seres um milagre criado só para mim”. E em águas profundas e algumas vezes escuras Bethânia abre espaço para uma criação coletiva dos Titãs, para as praias desertas de Jobim, uma inserção rápida pela obra de Caymmi, Caetano, um canto de Toquinho e Vinícius numa participação especial da percussão de Nana Vasconcellos. “Só na foz do rio é que se ouvem os murmúrios de todas as fontes” (Guimarães Rosa).

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