07 novembro 2006

É tempo de Ruy Espinheira Filho

Numa manhã de novembro, em Barra de Jacuípe, deitado na rede, contemplo os versos de Ruy Espinheira Filho. E que versos, lindos, livres a passear pelo meu corpo, minha mente e transcender por todo o ambiente. Não há como resistir. As pulsações de seus poemas, sereno e profundo, transparente como águas do rio que passa e deixa recordações. Cada palavra tem seu tempo certo, fragmentos do passado tão presente, constante.

“Elegia de Agosto e outros poemas” (edição Bertrand Brasil) é de uma leveza melancólica que arrepia. “Canção Matinal”, por exemplo, produz prazer, reflexão: “Acorda bem cedo o homem/da casa de telha-vã/e abre janela e porta/como se abrisse a manhã.//E eis que a vida não é mais/nem triste, nem só, nem vã./É doce: cheira a goiaba/e brilha como romã//orvalhada. E ele caminha,/o homem, com passos de lã/para em nada perturbar/a quietude da manhã.//Já não há mágoas de perdas/nem angústias de amanhã,/pois a alma que há na calma/entre a goiaba e a romã//é a própria alma do homem/da casa de telha-vã,/que declara a noite morta/e acende em si a manhã”.

E o que dizer da beleza de “Soneto da Negra”? Faz fluir como sonoridade, feito de emoção, memória pessoal, impressão digital: “A cor da suavidade é que a modula./Nela se abisma a luz e se revela/incapaz de alterar nada daquela/penumbra que a atrai, absorve, anula.//Nessa paisagem que coleia, ondula/como um rio, ou o mar (e é dela e ela),/um vento violento me desvela/um animal que me trucida e ulula.//O tom da suavidade não se altera,/eleva um canto cálido e me diz/que são garras de amor, e é bela a fera.//E assim, em carne rubra e cicatriz,/entrego à cor profunda que me espera/estes despojos em que sou feliz”.

E naquele amanhecer de novembro, “os deuses estavam felizes e sopraram suavidade especial sobre a manhã”. Os versos de Ruy transpiravam, ascendiam. Estava saudoso de ritmo e de verso. “Chegar, assim, a um dia/como este, quem diria?//Ninguém, que não poderia/alguém saber deste dia.//Nem eu, que me prometia/varandas de calmaria//se a uma hora tardia/da vida chegasse um dia.//No entanto, eis-me neste dia,/o qual jamais urdiria//nem em pesadelos; dia/ardendo contra a alegria,//a paz, o amor, a poesia,/o corpo, a esperança; dia//como nenhum: pedraria/fulgurante de agonia” (Este dia).

E em sua canção da alma meditativa o poeta escreve: “Sopra o vento, sopra o tempo/- e o que se medita a alma?/Não diz. Mas, seja o que for,/será, como tudo, nada”. “Amor antigo, de quando/nem me sabia te amando//Sabia só que se abria/o dia quando te via//e alguma coisa doía/com uma dor de alegria//- ou como feliz desgosto/aceso à luz do teu rosto” (trecho de Canção do Amor Antigo). Dessa forma o poeta da memória cria um mundo de sentimentos ternos e melancólicos sustentado em suas lembranças e sonhos. Versos escritos de 1996 a 2004, numa consistente construção lírica, de peito aberto e língua franca. Dividida em duas partes, “Elegia de agosto” e “A cidade e os sonhos”, o poeta retorna ao passado e ilumina. Nessa abertura de temporalidade ele freqüenta o espaço de alma e sonho, de memória.

“O silêncio sonha nas telhas” abre o poema “Insônia” onde o poeta tenta em vão dormir e mostra sua natureza frágil e perene, restando apenas, memórias: “e guardo/como vêem/memórias/que o tempo faz cada vez mais fundas”. E é nessa memória que o poeta encontra a fonte de sua poesia. E registra: “depois ainda escreve/mais; escreve (e até/escreve que escreve)//para que a vida/seja um pouco menos/obscura e breve” (Epígrafe). Assim o homem existe porque existe como memória (“e por isso escrevo estas palavras que parecem/fáceis e indiferentes mas são/difíceis e dolorosas”).

Entre um verso e outro, voltado para o humano, vividos na alma, interligando tempos, sentimentos, o poeta transporta suas experiências existenciais. E recorda amigos, mulheres, parentes e os momentos marcantes. E como escreveu Miguel Sanches Neto na orelha do livro, “Ruy Espinheira encontra no tempo morto os símbolos da permanência. Somente olhando para o que acabou, podemos descobrir aquilo que sobrevive à morte. Na verdade, cantar o presente é que nos deixa confundidos, pois não conseguimos distinguir no agora aquilo que guarda possibilidades de transcendência”.

A intensidade poética dos versos de “A Musa” e “Nome” imprime em toda sua obra. E mesmo navegando nas águas do rio heraclitiano em corrida permanente, suas águas aparecem represadas seja em cacimba, açude ou moringa. Água em repouso, tranqüila, transparente. “Cai a tarde, indiferente,/sobre os muros e o jardim./Nunca me senti tão vasto/na história contada em mim” (Epílogo). E assim ficam os versos de Ruy, naquela manhã de novembro, um feriado de finados, em minha memória. Versos impregnados de sonoridade, lirismo, saudade, verdade. (Gutemberg Cruz).


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