08 novembro 2006

De olhos bem abertos

Olhar em italiano (guardare) e em francês (regarder) significa cuidar, zelar, guardar, ou seja, ações que trazem o outro para a esfera dos cuidados do sujeito: olhar por uma criança, olhar por um trabalho. Já no sentido de vigilância: estar de olhar, ficar de olho. A pessoa pode ver com bons olhos (esperança) ou mau olhado que seca as plantas (inveja, do latim invidia que significa mau olhado – in-contra, ved-tema de visão).

Há diversos modos de olhar com que a antropologia popular descreve. Se há sinais de ganância o povo diz olho gordo. Se o desejo é voraz tem olho comprido, se é parado (olho de peixe morto), agudo (olho de lince), infiel (olho de gato), tímido (olho de coelho), cruel (olho de cobra), sensual (olho de macaca).

Detetive, em inglês, se diz private eye, olhar que espia, espreita e espiona. Há uma crença perceptiva de que “o pior cego é aquele que não quer ver”, pois as coisas aí estão, visíveis. O olhar sempre foi considerado perigoso: as filhas e a mulher de Ló, transformadas em estátuas de sal. Orfeu perdeu Eurídice. Narciso perdeu de si mesmo. Édipo cego para ver o que, vidente, não podia enxergar. Perseu defendendo-se da Medusa forçando-a a olhar-se. Os índios, recusavam espelhos, pois sabiam que a imagem refletida é sua própria alma e que a perderão se nela depositarem o olhar.

Olhos nos olhos, quando há sinceridade, o olhar expõe no e ao visível nosso íntimo e o de outrem. Olhar é, ao mesmo tempo, sair de si e trazer o mundo para dentro de si. A cegueira, disse Sócrates no Fédon, é a perda do olho da mente. Olhar em direção ao passado, na memória. A educação dos sentidos sempre fascinou os filósofos enciclopedistas. Para eles, os sentidos não educados são incapazes de perceber o mundo. Através da história o homem aprendeu a ver, criou modos de ver. O Barroco é um dos modos de ver a realidade, assim como o Expressionismo, Modernismo etc.

No mundo dos sentidos não há estabilidade nem harmonia, dizem alguns autores. Os sentidos, como as paixões, perturbam a alma, e, sem esperança, conduzem ao vício e à loucura. O filósofo Platão nos convida a desconfiar da percepção. Já Epicuro, os sentidos são os mensageiros do conhecimento. E Merleau-Ponty diz que “todo o saber se instala nos horizontes abertos pela percepção”.

É a aptidão visual para o discernimento que leva Horacio, na Arte Poética, a afirmar que “a mente é movida mais lentamente pelo ouvido do que pelo olho, que faz as coisas parecerem mais claras”. Os olhos são espelhos do mundo, janela da alma, escreveu Leonardo da Vinci. Giordano Bruno disse que “a vista é o mais espiritual de todos os sentidos”. Já o padre Antônio Vieira disse que nos olhos estão compreendidos todos os sentidos. E Hegel acreditava no olho do espírito.

“A vida que ninguém vê” da jornalista Eliane Brum é um bom exemplo do que é capaz o poder do olhar e de um bom texto para que se possa tocar o leitor. No livro, Eliane conta a história de pessoas normalmente tidas como parias, ou invisíveis. São personagens do nosso cotidiano, mas fingimos que não os vemos, ou somos levados a achar que sua condição é natural. Com grande sensibilidade, Eliane descobre o tema da grande reportagem mudando apenas o ângulo, o foco, ou, numa palavra, o olhar. No texto que encerra o livro, “O olhar insubordinado”, ela faz sua profissão de fé: “Quem consegue olhar para a própria vida com generosidade torna-se capaz de alcançar a vida do outro”, “Olhar é um exercício cotidiano de resistência”, “Olhar dá medo porque é risco”.

Contrariando o último filme do cineasta Stanley Kubrick, “De Olhos Bem Fechados/Eyes Wide Shut”, abra bem os olhos, ou melhor, faça uma visita a reserva biológica Abrolhos, área destinada exclusivamente à preservação da fauna e flora. O nome Abrolhos provém da advertência Abra os Olhos, contida em antigas cartas náuticas portuguesas, aos navegantes daquela região, devido aos perigos que ela oferece dada a grande quantidade de recifes submersos. Distante aproximadamente de 70 Km da costa brasileira na região sul do estado da Bahia, é composto por um grupo de recifes de corais, ilhas vulcânicas e a plataforma continental dentro de seus limites (um polígono e um quadrilátero de interdição, visualizados nas cartas náuticas). O complexo recifal mais importante do Atlântico Sul, sabe, como poucos, enfeitiçar turistas do mundo inteiro encantando-os com seus infinitos recursos naturais.

Como o poeta Fernando Pessoa, que em seu leito de morte, segundo relata o biógrafo João Gaspar Simões, profere suas últimas palavras: “Dá-me os óculos!”. E Goethe em suas palavras finais disse: “Mais luz!”. E para encerrar essa crônica do olhar, nada melhor do que rever a composição “Olhos nos Olhos”, de Chico Buarque: “Quando você me deixou, meu bem/Me disse pra ser feliz e passar bem/Quis morrer de ciúme/Quase enlouqueci/Mas depois como era de costume, obedeci//Quando você me quiser rever/Já vai me encontrar refeita, pode crer//Olhos nos olhos/Quero ver o que você faz/Ao sentir que sem você eu passo bem demais//E que venho até remoçando/Me pego cantando sem mais nem porque//E tantas águas rolaram/Tantos homens me amaram bem mais e melhor que você//Quando talvez precisar me mim/Você sabe que a casa é sempre sua, venha sim//Olhos nos olhos/Quero ver o que você diz/Quero ver como suporta me ver tão feliz”




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